Em nome da neutralidade nacional do PSB, Lula e o PT sacrificaram a liderança emergente de Marília Arraes, apimentando disputa em família dividida
POR MARIA LIMA,
DO RECIFE / ÉPOCA
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Aos 34 anos, com três vitórias sucessivas como vereadora do Recife, Marília Arraes estava em triplo empate na busca docargo de governadora de Pernambuco - Arthur Marrocos |
Apontada como símbolo da renovação do petismo, a vereadora recifense Marília Arraes, de 34 anos, tornou-se, para seus apoiadores, vítima do centralismo nada democrático do comando lulista. Pleiteava ser candidata ao governo de Pernambuco, em disputa acirrada. Pesquisas registravam um triplo empate técnico entre o atual governador, Paulo Câmara (PSB), com 25%, Marília Arraes, com 21%, e Armando Monteiro (PTB), com 17%. A direção nacional do PT, em troca da neutralidade do PSB na eleição presidencial, abriu mão da candidatura em Pernambuco e em outros três estados. Atordoados, petistas pernambucanos iniciaram movimento para desfiliação em massa do partido, insatisfação contida pela própria Marília. Ela anunciou ser candidata a deputada federal, reafirmou o apoio a Lula e acatou a decisão que castrou sua candidatura.
A família Arraes está na política desde
o Império, com barões entre os antecedentes. Sobrinha do diretor de TV e cinema
Guel Arraes e da ministra do Tribunal de Contas da União (TCU) Ana Arraes,
Marília contou que se interessa por política desde os 15 anos, quando
acompanhava as andanças do avô Arraes, que não estimulava filhos e netos a
entrar na carreira. Ao contrário, disse. Começou a trabalhar no setor público
em 2007, ano em que se graduou em Direito pela Universidade Federal de
Pernambuco. Jamais trabalhou como advogada. Foi assessora da Secretaria de
Juventude e Emprego do primeiro governo de Eduardo Campos, seu primo, também
neto de Miguel Arraes. Pensou em ser delegada de polícia ou diplomata. Em 2008,
no entanto, decidiu se candidatar a vereadora, vencendo a primeira de três
eleições consecutivas. Afirma que financiou as campanhas com recursos de
família, pessoais e de amigos.
Eleita vereadora em 2008, rompeu em
2014 com o PSB — partido do avô Miguel Arraes e do primo Eduardo Campos. O
então governador escanteava a prima, privilegiava seu ramo da família e atuou
contra a candidatura dela a deputada federal, reclamaram aliados. Marília
Arraes investiu no PT quando o petismo estava em baixa, combalido pela
impopularidade de Dilma Rousseff. Filiou-se ao novo partido em 2016 e iniciou
seu projeto de se candidatar ao Palácio das Princesas, cavando seu espaço,
apesar das resistências dos caciques estaduais.
Loura, olhos azuis, discurso jovem,
brigona, mãe de Maria Isabel, de 3 anos, Marília encarna o perfil da renovação
política feminina pregada nos discursos pelas companheiras do PT. Virou
fenômeno entre a militância descontente de esquerda do estado. Desde o último
domingo, entretanto, tenta se recuperar da rasteira orquestrada de dentro da
cadeia, em Curitiba, por Lula, seu ídolo e maior cabo eleitoral.
Um dia depois de ver seu sonho
enterrado pela cúpula do PT na reunião do Diretório Nacional, por 57 a 29
votos, Marília retornou ao Recife destruída e passou o dia cuidando da filha,
que caiu de cama, com pneumonia. À noite publicou um vídeo em suas páginas de
rede social com foto estilizada de Lula na capa e a frase: “Jamais poderão
aprisionar nossos sonhos”. Na gravação, Marília manda uma mensagem à militância
para ficar unida e estancar uma onda inicial de desfiliações em protesto contra
o arranjo determinado por Lula para impedir o apoio do PSB nacional a Ciro
Gomes, candidato do PDT à Presidência da República. “Não fujo à luta, porque
com a esperança não se negocia! Vamos em frente”, disse Marília, no vídeo.
Na pós-degola, ela justifica a
continuidade do apoio a Lula como um projeto da sociedade, maior que uma
candidatura ao governo nesta eleição. “As árvores que dão mais fruto são as
árvores mais podadas”, consolou-se. A maior dificuldade, disse Marília, foi o
desfecho não negociado da neutralidade do PSB, já que tinha se preparado para
abandonar a candidatura em troca de uma aliança nacional formal com os
socialistas. “Foi traumático, mas estamos trabalhando para que as sequelas na
base sejam diminuídas”, afirmou.
Lideranças nacionais do PT, como Tarso
Genro, Jaques Wagner e Fátima Bezerra, protestaram contra a suspensão da candidatura
de Marília, que contava ir ao segundo turno e ser eleita governadora. Apesar do
arranjo do PT nacional, ela se nega a apoiar a reeleição de Paulo Câmara e
disputará o mandato de deputada federal. “Nosso campo segue firme na defesa de
Lula, dos avanços sociais e de nossos direitos. Esse campo entendeu que é
preciso não dispersar. Por isso a decisão foi lançar nossa candidatura a
deputada federal. Criar forças em Brasília é mais do que necessário. Sigo ao
lado de nossos candidatos a deputados, numa chapa exclusiva do PT, sem
coligação. Com esperança não se negocia, não subiremos no palanque desse
governo, do qual somos e continuaremos na oposição. Convicta de que me mantive
do lado certo da história”, disse Marília no vídeo dirigido à militância.
Segundo aliados, passado o impacto
negativo inicial, agora é engolir em seco e seguir a estratégia da cúpula do PT
para tentar tirar Lula da cadeia, eleger a vereadora uma das deputadas federais
mais votadas em 2018 e adiar o sonho do governo de Pernambuco para 2022. Na
convenção do diretório estadual que ratificou a candidatura de Marília por mais
de 90% dos votos, os militantes portavam cartazes contra o “golpe” que ceifou o
nome dela ao governo ao mesmo tempo que vestiam a camiseta com a inscrição
“Lula livre”. Marília e aliados minimizam a culpa de Lula e jogam na conta da
presidente nacional do PT, Gleisi Hoffmann, o atropelo que culminou no enterro
da candidatura ao governo sem nem mesmo conseguir o objetivo aceitável, que era
a coligação nacional formal com o PSB de Paulo Câmara.
Candidato
a deputado federal, João Campos, filho do ex-governador e candidato a
presidente morto durante a campanha Eduardo Campos, é um dos puxadores de voto
do PSB - Maria Lima
“Sabemos que teve o dedo de Lula, mas,
se ele fosse o negociador direto, não teríamos esse desfecho. É mais difícil de
aceitar porque o palanque de Marília seria o melhor para a defesa de Lula. O
primeiro impacto da decisão nacional foi muito negativo, muita gente revoltada
saindo dos grupos, se desfiliando. Agora é correr para manter a tropa unida, se
jogar de corpo e alma em defesa de Lula e Marília. Marília fez um belo
trabalho, é uma mulher de determinação e coragem, mas a política tem suas
dores”, lamentou Teresa Leitão, deputada estadual e integrante do Diretório
Nacional, uma das mais ferrenhas defensoras da candidatura de Marília.
Menos condescendente com Lula, Marcos
Arraes, pai de Marília, continua inconsolável e revoltado. Diz que o avô dela,
Miguel, ensinou a filha a fazer política com o povo, “não no tapetão”. “O que
Lula e o PT fizeram com Marília foi uma das maiores violências contra uma
liderança jovem que já vi na vida! Não vi nada igual nem nos tempos da ditadura
com meu pai ou com meu sobrinho em seus embates políticos. O que mais dói é que
Marília era a única coisa nova nesta eleição. Mas minha filha é uma guerreira.
Vai superar isso, se eleger deputada e em 2022 volta como candidata ao governo
se nova violência não for perpetrada contra ela”, desabafou Marcos Arraes.
Ainda não há sondagens sobre a
transferência de votos de Marília e do PT descontente para Paulo Câmara. O adversário
dele, senador Armando Monteiro (PTB), coligado com o Democratas e o PSDB, já
teve o apoio da petista em eleições anteriores e pode acabar se beneficiando
com a saída da segunda colocada nas pesquisas. Com o acordo do PT com o PSB
pernambucano e sem uma candidatura de esquerda, PDT, Pros e Avante formaram uma
chapa de última hora para concorrer ao governo com Maurício Rands (Pros) na
cabeça, a deputada Isabela de Roldão (PDT) como vice e o deputado Sílvio Costa
(Avante) para o Senado. “Marília entrou no PT quando todos estavam saindo.
Abraçou Lula e ocupou o espaço dos descontentes com o governo de Paulo Câmara.
O mérito é dela. É combativa, carismática e, além de tudo, tem Arraes no nome.
É uma liderança emergente”, avaliou Armando Monteiro.
Marília rompeu com o ramo dos Campos da
família Arraes quando Eduardo Campos, no PSB, deixou o lulismo e, no lugar de
trabalhar pela reeleição da presidente Dilma Rousseff em 2014, decidiu se
lançar candidato ao Planalto. Ela queria que o primo a apoiasse como candidata
a deputada federal, o que não aconteceu. Filiou-se então ao PT e passou a fazer
oposição cerrada aos governos do PSB nas esferas estadual e municipal. A
família tem uma tradição política muito forte em Pernambuco. Miguel Arraes é a
liderança morta mais simbólica no Nordeste e a tragédia que vitimou Eduardo
Campos num acidente aéreo durante a campanha presidencial resgatou a herança
dos Arraes na política pernambucana. Hoje, no entanto, o espólio de Miguel
Arraes está dividido e com divergências familiares profundas.
Observadores políticos dizem que, na
raiz da disputa dos Arraes com a derivação dos Campos está Renata Campos, viúva
do ex-governador de Pernambuco. Com a morte de Eduardo Campos, ela se fechou em
torno dos filhos e de Paulo Câmara, indicado ao governo como sucessor dele no
Palácio do Campos das Princesas, onde, dizem, ela tem uma influência
“gigantesca”. Passou a cultivar o “eduardismo” como nova força dentro do
“arraesismo”. Os filhos de Miguel Arraes, como Marcos, pai de Marília, e a própria
mãe de Eduardo, a ministra do TCU Ana Arraes, ficaram mais distantes. Além de
Marília no PT, os representantes dos Arraes-Campos nestas eleições são Antônio
Campos, irmão de Eduardo e candidato a deputado estadual pelo Podemos, e João
Campos, filho de Eduardo que disputa uma vaga de deputado federal pelo PSB.
Primogênito de Renata, João Campos é a
estrela da campanha de Paulo Câmara. Ana Arraes, procurada por ÉPOCA, se disse
impedida de falar, pelo cargo no TCU. Indicou o filho Antônio Campos, conhecido
como Tonca, para falar sobre a posição dos Arraes. Antônio Campos confirmou o
afastamento entre a mãe e a viúva de Eduardo Campos. Disse que a ministra
apoiou a candidatura de Marília e não votará em Paulo Câmara. Candidato
derrotado à prefeitura de Olinda em 2016, Antônio disse que a “ordem” para
Paulo Câmara boicotar sua candidatura em favor da candidata do PCdoB, Luciana
Santos, teria partido de Renata. A deputada federal Luciana Santos é hoje
candidata a vice na chapa de Paulo Câmara.
Miguel
Arraes com a neta Marília no colo. Político lendário, ele não estimulava
familiares a abraçar a carreira que o consagrou - Arquivo Pessoal /
Família de Marília Arraes
“Fui traído por forças do PSB e do
governador para não se criar uma liderança familiar que viesse a ofuscar
Eduardo, Geraldo Júlio e Paulo Câmara. A participação da viúva foi decisiva.
Ela deu a ordem. Agora aconteceu com Marília, que era a oportunidade de voltar
a ter um Arraes legítimo no governo. Depois de tudo que ela fez por ele, Paulo
Câmara não telefonou, não mandou uma flor para minha mãe em seu aniversário de
70 anos. Não há um rompimento, mas um distanciamento. Quando Eduardo era vivo,
ele equilibrava a relação. Hoje não estão brigadas, estão distantes. João,
candidato, nunca foi pedir a bênção de minha mãe. Ela fica triste”, disse
Antônio Campos.
No ramo político de Paulo Câmara e dos
Campos, todos se negam a falar da dissidência de Marília. Renata não dá
entrevistas ou se manifesta publicamente sobre política, tampouco o filho João,
lançado candidato e que, em campos opostos, deverá disputar com a prima Marília
o título do mais votado entre os herdeiros de Miguel Arraes, prévia de um
possível confronto direto entre os dois pela prefeitura do Recife em 2020.
“Nosso objetivo sempre foi a unidade das forças de centro-esquerda, que,
tradicionalmente, em Pernambuco estão juntas na Frente Popular. Isso está
acontecendo. Nosso enfrentamento real sempre foi e será com a turma do Temer,
que está no palanque adversário”, disse Paulo Câmara.
A única coisa que une hoje Marília
Arraes e o ramo dos Campos, por meio de Paulo Câmara e do primogênito João, é o
uso de Lula como cabo eleitoral. A foto de capa de Marília em suas redes
sociais mostra um Lula afetuoso, abraçando-a e lhe dando um beijo na testa. No
último domingo, enquanto a candidatura de Marília era enterrada pelo Diretório
Nacional do PT em São Paulo, na entrada do Clube Internacional no Recife, uma
enorme faixa com as fotos de Lula ladeado por Humberto Costa e Paulo Câmara
dizia: “Lula escolheu Paulo Câmara”. Todos os discursos, de Câmara, Humberto e
João Campos, remetiam à defesa de “Lula livre”. “Aqui estamos unidos para
defender e fazer Lula presidente. Neste momento de tantas dificuldades, em
Pernambuco se exigiram gestos, e o PT fez seu gesto”, discursou Humberto Costa
para justificar sua parceria com os ex-adversários e a cassação da companheira
Marília Arraes. Dona Renata, ao entrar com o filho João no palanque, foi
saudada com gritos de “guerreira”. No telão, um vídeo de Eduardo Campos
defendendo Câmara como seu sucessor emocionou a militância.
No discurso inflado, João parecia a
reencarnação de Eduardo Campos, com seus olhos azuis transparentes, camisa
branca, calça jeans e fala veemente. Logo atrás, Renata emitia sinais de aprovação
a cada frase mais contundente. Ao responder sobre a performance do filho no
palanque, Renata fez um gesto negativo, seus dedos tapando os lábios, mas com
os aliados não escondeu o orgulho por ver o herdeiro iniciar o caminho trilhado
pelo pai: “Naquela hora passou um filme na minha cabeça. Sabe um daqueles
filmes lindos e bons? Pois foi assim”.
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